domingo, 22 de fevereiro de 2015

"Loucas pra casar" e a solteirice em Goiânia e Salvador

A comédia "Loucas pra casar" (2014) traz a seguinte sinopse:


"Malu (Ingrid Guimarães), Lúcia (Suzana Pires) e Maria (Tatá Werneck) encontraram o homem ideal e planejam se casar. Até que elas descobrem que esse homem, na verdade, é o mesmo: Samuel (Marcio Garcia), que vinha mantendo um namoro com todas elas nos últimos anos. As três terão que decidir se vão disputar entre si pela exclusividade ou unirem-se pela vingança. Elenco: Ingrid Guimarães, Tatá Werneck, Márcio Garcia, Suzana Pires, Fabiana Karla, Edmilson Filho, Guida Vianna, Camilla Amado Direção: Roberto Santucci, Gênero: Comédia"
Fonte: http://www.cinemark.com.br/filmes/loucas-pra-casar/5234 
Na semana de estréia, fui convidada a comentar o filme e o lugar das mulheres solteiras na sociedade atual, trazendo informações sobre minha pesquisa realizada com solteiros e solteiras em Salvador, e o repórter Renato Queiroz discutiu dados e percepções sobre as pessoas solteiras de Goiânia. A entrevista foi publicada no jornal "O Popular", de Gioânia, e rendeu muitos comentários na rede social, tanto que dei uma segunda entrevista por telefone.
Confiram a primeira entrevista completa, com comentários extras ao que foi publicado no jornal:
O que achou da forma como a temática da solteirice de mulheres na faixa dos 40 foi tratada no filme Loucas Pra Casar?

A solteirice de uma mulher na faixa dos 40 anos, que é bonita, inteligente, bem sucedida, é tratada como algo indesejado, porque o que se espera socialmente é que uma mulher com este perfil esteja casada. Assim, a personagem Malu (interpretada por Ingrid Guimarães) não se contenta em ter uma relação de namoro: ela tem que casar. E de branco, na igreja. O desespero, a insegurança, o sentimento de que está em um patamar inferior às mulheres casadas (como a personagem é vista pelas amigas, que lançam a ela um olhar de pena como se fosse a “coitadinha” que precisaria sair dessa condição para ser feliz*), são expressões de que a solteirice não é uma condição satisfatória para as mulheres – e em certa medida, também para os homens que passam dos 40 anos (no filme, Samuel, o namorado de Malu, interpretado por Márcio Garcia, é de certa forma, cobrado por sua mãe para que encontre uma mulher ideal para casar). Este é um discurso midiático que tem sido recorrente em produções brasileiras e internacionais (principalmente norte-americanas), que retrata um movimento nomeado de Backlash, por Suzan Falude, ou seja, uma tendência ao “retorno ao lar”, à valorização do modelo tradicional de mulher esposa, mãe e dona de casa, e critica as novas posturas e lugares sociais ocupados pelas mulheres para além do lar – fruto principalmente de conquistas feministas. E o lugar da mulher solteira é subversivo, porque fere modelos de feminilidade há séculos construídos, já que essa mulher não tem obrigações de mãe e esposa, e pode exercer sua sexualidade de diversas formas. Assim, esse lugar não é valorizado pela mídia em geral. As mulheres solteiras e independentes têm sido retratadas pela mídia como mulheres poderosas e livres, principalmente a partir da década de 1990 com o sucesso do seriado Sex and the city, mas, se olharmos nas entrelinhas, somente a vida conjugal e familiar darão a elas um final feliz.


*Achei interessante a cena que Malu desabafa em um encontro com as amigas que são casadas e com filhos, e afirma que não quer ter filho e que tem uma vida boa, com possibilidades de planejar uma viagem à Paris, enquanto as amigas não terão essa possibilidade devido às obrigações com os cuidados com filhos e seus maridos. Após esta cena, ela aparece sozinha no quarto, vendo uma cena romântica de um seriado na tv e comendo chocolate, ou seja, sentindo-se sozinha depois da mentira que contou sobre o fato de se sentir segura não tendo uma família. Essa cena é recorrente quando a mídia retrata mulheres bem sucedidas que não são felizes porque não tem um par ou quando o tem, não conseguem conciliar família e carreira (como nos outros filmes de comédia protagonizados por Ingrid Guimarães: “De pernas pro ar” – 1 e 2). Retratar mulheres bem sucedidas e felizes parece ainda ser um desafio para produtores, roteiristas e diretores (em sua maioria, homens), porque ainda é difícil reconhecer o que a realidade social mostra: há sim, mulheres bem sucedidas, saudáveis emocionalmente, que não necessariamente tem dificuldade de conciliar família e carreira, e que também vivem bem estando solteiras.  


A senhora acredita que há uma diferença de expectativas afetivas entre homens e mulheres nesta faixa etária?

Na minha pesquisa de doutoramento sobre a solteirice em Salvador, os/a participantes (homens e mulheres solteiros/as de classe média, residindo sozinhos/as em Salvador, com idades variando entre 30 e 60 anos), apontaram expectativas em torno da vida afetiva, apresentando proximidades e diferenças: ambos buscam satisfação no campo da vida afetiva e sexual, esperam se relacionar com uma pessoa a partir de suas características psicológicas que falam mais do jeito de ser da pessoa, do que esperam ser atraídos somente pela aparência física. Muitos esperam mais uma relação estável como o namoro do que um casamento, e principalmente buscam uma forma de manter a liberdade e a individualidade que são elementos importantes para a vida de solteiro/a. As diferenças apontadas partiram principalmente de mulheres que estão satisfeitas em se engajarem em relações afetivo-sexuais eventuais e principalmente em morarem sozinhas, e não esperam o casamento nem querem ter filhos, e de muitos homens solteiros que almejam se casar e ter filhos, rompendo com a ideia de que “toda mulher solteira espera um casamento” e “todo homem solteiro tem uma vida boêmia e não quer se casar”.

Quais as reclamações mais comuns que ouviu das mulheres na sua pesquisa sobre solteirice?

No geral, nas conversas com as mulheres solteiras, percebi que ter o cotidiano movimentado por diversas atividades de trabalho, lazer, cuidados consigo (como a prática de esportes) e o contato com diferentes pessoas que compõem uma rica rede de relações, sobressaiu-se às  discussões sobre reclamações por não estarem casadas. Claro que ouvi algumas reclamações sobre a dificuldade de encontrar uma pessoa ideal para uma relação amorosa mais duradoura e para um casamento, mas nada que deixasse essas mulheres desesperadas e obcecadas com o casamento como a personagem Malu, do filme “Loucas pra Casar”. E nem com distúrbios psíquicos relacionados a essa obsessão. Isto porque atualmente o fato da pessoa não estar casada depois dos trinta anos, não impede que tenha uma vida social, de trabalho e uma vida sexual movimentada.
Algumas reclamações que gostaria de destacar foram sobre o cotidiano do lazer das solteiras: no processo de construção dos dados foi interessante ter ido a espaços de lazer observar homens e mulheres solteiros/as em boates e bares de Salvador e de outras cidades do país. Especificamente em Salvador, ouvi muitas mulheres reclamando da falta de opções de lugares para sair quando querem dançar e encontrar pessoas da mesma faixa etária. Nas entrevistas, essa reclamação também apareceu, sinalizando que a vida noturna parece não atender democraticamente os anseios de todos/as que buscam por diversão. Outra reclamação foi o incômodo que sentem quando são abordadas por homens que insistem em ter com elas alguma aproximação de cunho sexual, considerando que estão disponíveis pelo fato de estarem solteiras. As mulheres que participaram do estudo afirmam que tem a liberdade de escolher com quem querem se relacionar sexualmente, mas não é por estarem em um bar ou boate que sempre estão disponíveis para o sexo casual (ou que o procuram nestes locais).

Existe ainda muito estigma sobre a mulher que não se casa após os 40 anos?

O estigma da “solteirona” vem sendo superado e dando abertura à imagem das “novas solteiras” como discutiu Eliane Gonçalves em estudo sobre o tema, e como vem sendo confirmado em outros estudos e na prática social. A tendência para as mulheres de classe média e alta (é importante fazer esse recorte de classe social porque a realidade das mulheres de 40 anos das camadas populares tende a ser muito diferente), após os 40 anos, é ser bem sucedida, independente e segura de si mesma, o que possibilita que escolhas sejam feitas inclusive no campo afetivo.

A antropóloga Mirian Goldenberg cunhou o termo "capital marital" para explicar que muitas brasileiras afirmam que sofrem preconceito por não serem casadas. Elas se sentem desvalorizadas ou até mesmo fracassadas por não terem o tal do "capital marital". A senhora acredita que esse sentimento um dia vai ser superado?

Homens e mulheres desde tenra idade convivem com expectativas sociais sobre o casamento e as idealizações românticas que vem sendo reproduzidas desde os contos de fada às novelas, filmes e seriados. Uma das minhas entrevistadas chegou a questionar em que medida a expectativa sobre o casamento é dela ou é do seu meio social. Identificar essa diferença é um passo importante para a construção de um projeto de vida no campo da afetividade – que pode ou não incluir o casamento. Reconhecer que as escolhas e modos de viver são diversos e tem que ser respeitados, é um passo importante para a superação do sentimento de fracasso quando a escolha ou a situação em que a pessoa está vivendo estão fora de um “padrão”. Acredito que deve ser superada a visão ainda tradicional acerca das construções de gênero que colocam homens e mulheres a seguirem modelos pré-determinados e que engessam a diversidade de expressões de identidades, sexualidades, relacionamentos e modos de vida. E as construções midiáticas têm uma função importante para promover rupturas, quando proporcionam a reflexão sobre as consequências da fixação em seguir um padrão de mulher perfeita em busca de um uma vida perfeita (que inclui ter um homem perfeito, dentro de um modelo heterossexual), como no filme “Loucas pra casar” – que, por sinal, não superou o folhetim, ao trazer o casamento como um final feliz. 

Links para acesso as reportagens de Renato Queiroz publicadas no Jornal "O Popular":

Mulheres se queixam da alta concorrência no mercado do amor em Goiânia. Disponível em: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/mulheres-se-queixam-da-alta-concorr%C3%AAncia-no-mercado-do-amor-em-goi%C3%A2nia-1.760569


Matéria sobre mercado afetivo de Goiânia repercute nas redes sociais. Disponível em: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/mat%C3%A9ria-sobre-mercado-afetivo-de-goi%C3%A2nia-repercute-nas-redes-sociais-1.762336